Todos por um: a história do Sr. Armando e os mosqueteiros

26/05/2020 10h53

Coronavírus, histórias reais, crônicas da vida, Letras

 

Sr. Armando se sentava na segunda carteira da fileira do meio, da sala número 16, do Departamento de Letras da Universidade de Taubaté. Viúvo, aposentado, sempre chegou cedo para minhas aulas e aproveitava o tempo para copiar o conteúdo da apostila eletrônica no caderno. Dizia que a matéria manuscrita era mais fácil para estudar e que a própria atividade de passar a limpo já o ajudava a memorizar.


Graduado em Ciências Contábeis e Direito pela Unitau e pós-graduado em Processo Civil também pela Unitau, exerceu funções na área comercial e jurídica, e, aos 77 anos, quis se tornar aluno do Curso de Letras para aprimorar seu inglês, idioma que aprendeu para realizar viagens de trabalho e de férias com a família. Esse desejo foi uma forma de resistir à tristeza e desafiar a solidão depois do falecimento de sua esposa, com quem esteve casado por quarenta e dois anos e teve três filhos.


Sr. Armando roubava a atenção de toda sala porque não só tinha a idade para ser avô dos demais alunos, mas também sempre tinha um exemplo de vida para relacionar com o conteúdo das disciplinas. Era tão agradável ouvir o Sr. Armando, que passamos nós mesmos a lhe pedir os exemplos. Entretanto, o primeiro ano letivo foi difícil para ele, que retornava aos bancos escolares depois de quarenta e a quatro anos. Professora, tudo está muito mudado, dizia o Sr. Armando. Daí acabou de exame na minha disciplina, mas me prometeu se empenhar ainda mais porque, nas palavras dele, “queria chegar ao outro lado do rio, não queria voltar”. E conseguiu, pois não carregou nenhuma dependência.


O segundo ano letivo se iniciou, e lá estava Sr. Armando com a mesma disposição e com a enorme bagagem que não lhe pesava porque a dividia com os jovens em sala de aula. Parecia que tudo ele conhecia, tudo já tinha experimentado. Mas, como dizem seus colegas mais novos, “só que não”.
O afastamento social imposto pela pandemia trouxe o desafio das aulas remotas que, no primeiro momento, soou como intransponível. Eis aí uma coisa que o Sr. Armando desconhecia. Estava se vendo impedido de participar por não ter se apropriado da tecnologia para esse fim. Vencido pelos aplicativos, plataformas e senhas, se ausentou e despertou saudade. Cadê o Sr. Armando? Descobrimos um homem confinado num apartamento com as janelas fechadas para nós.


Unidos pelos laços da amizade, os alunos zelosos, em mutirão, se organizaram e mobilizaram os professores para buscar o Sr. Armando. Montaram grupo no whatsapp onde foram traçadas as estratégias : os professores continuariam a disponibilizar o conteúdo das aulas por e-mail; o aluno Vander conversaria com o sr. Armando por telefone para animá-lo; a aluna Paula instalaria o zoom no computador do Sr. Armando, e, com a ajuda do aluno Luan, o orientaria para acessar as aulas virtuais; Paula e Luan, agora com a parceria dos alunos Brenda, Gabriel e Karina, organizariam o conteúdo dos vídeos, conferências e postagens de todas as disciplinas em formato de apostilas impressas com letras grandes para facilitar a leitura; por fim, Roseli, a secretária do departamento, ajudaria na impressão. E tudo aconteceu conforme o planejado.


De posse das apostilas, Sr. Armando começou a recuperar as leituras perdidas. E, com as instruções minuciosas, no dia 15 de maio, ele conseguiu entrar na vídeo-aula. Dessa vez, no lugar do professor, era a ele que todos esperavam.


Ao recebê-lo com palmas e gritos de alegria, os jovens mosqueteiros lhe disseram que naquele dia seriam eles a dar um exemplo. Um exemplo de amorosidade e cuidado em tempo tão adverso.


Depois da grande festa, pediram-me: avante, professora, nossa sala agora está plena. Prossiga, por favor, para o outro lado do rio.

 

Profa. Adriana Cintra de Carvalho Pinto (Departamento de Ciências Sociais e Letras)